Dois temas inter relacionados vem ocupando meus pensamentos nos últimos quinze
anos: o veganismo e a transição para sociedades sustentáveis.
O veganismo foi pauta da minha dissertação de mestrado e do meu ativismo desde
então, enquanto a transição para sociedades sustentáveis vim a tratar no meu
doutoramento, segue sendo um tema que a mim é muito caro, a pautar meus escritos,
minhas participações em entrevistas, congressos, lives e, principalmente, meu atual projeto
de vida.
Vou começar pelo segundo tema (transição), voltarei ao primeiro (veganismo) e, por
fim, tentarei unir a ambos, procurando formular uma singela proposta de ação, trazendo
ideias que apresentei nesses dois momentos da minha trajetória acadêmica e ativista.
 
Transição de onde para qual lugar?
 
O debate sobre a “transição energética”, que vinha ganhando corpo com as
crescentes preocupações em relação ao colapso climático iminente, alcançou maior
relevância após o início da guerra da Rússia com a Ucrânia. A constatação de que a
relação de dependência da UE perante a Rússia afetaria as economias dos países do
continente acelerou a discussão sobre a transição da matriz energética europeia.
Além das preocupações com a economia de energia, este debate tem levado ao
grande noticiário matérias sobre a busca de novas tecnologias “salvadoras” para dar conta
dos problemas climáticos, seja uma nova forma de armazenamento de energia (baterias
mais baratas, inclusive), substitutos biodegradáveis aos plásticos, novos combustíveis para
aviões e navios (cargueiros movidos a hidrogênio em vez de a diesel, por exemplo), etc. E
até uma nova categoria de startups surgiu: as “climate techs”, voltadas para soluções
climáticas, principalmente aquelas que envolvem atividades de alto impacto climático, como
a agricultura e os transportes.
Entretanto, se a transição para uma matriz energética mais limpa é importantíssima
para mantermos as condições de vida no planeta, a transição que a mim parece fazer mais
sentido é de maior envergadura. Uma transição sistêmica que abarque não somente a
dimensão energética, mas a econômica, a social, a ecológica e a espiritual: uma transição
para um outro estágio civilizacional em que possamos compreender que somos parte da
natureza e não um elemento fora dela e que somos parte de um TODO que nos abarca e
cujo equilíbrio depende de nossas ações diárias.
Um outro aspecto a ser considerado é a ideia de que as pessoas (os cidadãos) que
serão afetadas pelas mudanças climáticas e aspiram viver em um sistema diferente do atual
 
possam compartilhar uma nova racionalidade que seja colaborativa e não competitiva. Essa
nova racionalidade colaborativa pode ser vislumbrada no conceito de Comum.
O conceito de Commons – ou Comum, como é denominado na língua portuguesa –
está presente em discussões nas áreas de Ciências Sociais há pelo menos 50 anos. Mas
no âmbito deste singelo texto, o que importa é dizer que o Comum pode ser apresentado,
em uma definição bem direta e simples, como um bem ou um espaço – um pedaço de terra,
uma floresta, uma moradia, uma padaria, um braço de rio, uma nascente, um software de
código livre, etc – gerido por uma comunidade que se autogoverna. Não há um comum sem
o processo de "comungar" (commoning) e sem atores que “comungam”, os “comungueiros
ou comuneiros” (commoners).
O comum também envolve uma dupla relação de interdependência: a) entre os
atores que “comunham” e b) entre os atores que comunham e os bens comuns envolvidos
no processo de “comunhar”. Cada elemento (humano ou não) da relação influencia e é
influenciado pelas relações estabelecidas. Se a interdependência está implícita, a
colaboração – e não a competição ou a exploração – por parte do elemento humano é uma
escolha, portanto uma atitude política, que questiona a inevitabilidade de uma certa
racionalidade dada a priori e mesmo à noção de racionalidade baseada apenas em fatos ou
razões, mas que desconsidera os afetos que permeiam as escolhas.
É essa escolha pela colaboração para lidar com o Comum que constitui um dos
elementos centrais em um processo de transição para sociedades sustentáveis. Como
estabelecer (ou recuperar) a capacidade de colaborar, se é na competição da racionalidade
neoliberal que somos adestrados para sobreviver e prosperar? Além disso, para além da
atitude política de colaborar, como fortalecê-la como uma força de transformação social?
 
E o veganismo nesse contexto?
 
O veganismo é uma postura ética que tem como objetivo a eliminação de todas as
formas de exploração animal, em todos os seus aspectos, seja na alimentação, seja no
vestuário, no lazer, nas manifestações de caráter religioso, etc. Fundamenta-se em uma
postura ética que defende que os animais são sujeitos de direitos – os direitos animais – e
condena todas as formas de regulação da exploração dos animais sob a justificativa de
defesa do “bem-estar” destes.
O bem-estarismo justifica, inclusive, o “abate humanitário”, definido como um
conjunto de procedimentos técnicos e científicos que visam garantir o bem-estar dos
animais desde o momento em que são embarcados na propriedade rural até a operação
final de sangria no matadouro.
 
Ou seja, “boas”, “humanitárias” ou “adequadas” condições de vida “garantidas” aos
animais nos matadouros, nos zoológicos, nos aquários, nas fábricas de criação de animais
de corte, nos laticínios, ou mantê-los fora de seu habitat original não abolem sua condição
de exploração pelos humanos.
Repetindo, nenhum “procedimento”, por mais “bem-intencionado” que seja, garante
o “bem-estar” de animais vivendo fora de seu habitat original, manejados por seres
humanos e destinados a MORRER para benefício destes. Nenhuma prática que “promova o
bem-estar” dos animais leva em consideração o interesse pela vida em si dos animais.
Portanto, o veganismo abolicionista defende que somente a ABOLIÇÃO de toda
forma de exploração dos animais deve ser considerada e que este vai além da mera
denúncia acerca da dominação e da mercantilização dos animais e apresenta uma crítica
enfática ao carnismo, disseminador da prática do especismo e do desrespeito à condição de
senciência dos animais não humanos.
Antes de mencionarmos o que significa o especismo é importante esclarecer o que
entendemos por carnismo e estabelecer uma distinção crucial entre carnismo e
carnivorismo.
Enquanto o carnivorismo é, por definição, a condição biológica de animais que
dependem da carne para sobreviver (o leão, a hiena e o lobo, por exemplo), assim como o
omnivorismo é a condição daqueles que têm aptidão fisiológica para ingerir tanto carne
quanto vegetais (a raposa, o urso-pardo, a tartaruga e o ser humano, por exemplo), o
carnismo, como afirma Melanie Joy, em seu livro “Por que amamos cachorros, comemos
porcos e vestimos vacas: uma introdução ao carnismo”, é uma ideologia, um sistema de
crenças, uma opção feita por indivíduos da espécie humana. Uma escolha, portanto.
O especismo, por sua vez, é um conceito que expressa o ponto de vista de que uma
espécie, a Homo sapiens, tem o direito de explorar, escravizar e matar as demais espécies,
por estas serem consideradas “inferiores” ou “úteis” à espécie humana.
Esse conceito foi cunhado e vem sendo utilizado por defensores dos direitos dos
animais para se referir à discriminação que envolve atribuir a animais diferentes valores e
direitos baseados na espécie humana, principalmente quanto ao direito de propriedade ou
posse. Aquele que adota (ou pratica) o “especismo” – o especista – crê que a vida de um
membro da espécie humana, pelo fato do indivíduo pertencer a esta espécie, tem mais peso
e mais importância do que a vida de qualquer outro animal.
De acordo com a visão especista, os fatores biológicos que determinam a linha
divisória da espécie humana teriam um valor moral. Ou seja, a vida do ser humano valeria
“mais” do que a de outras espécies animais, princípio que eu, como vegano abolicionista,
rejeito.
 
Por uma transição socioecológica que respeite todas as espécies e o planeta
 
Tendo em vista o que consideramos ser o processo de transição mais sensato a ser
realizado pela humanidade e explicitado o que significa a postura vegana abolicionista,
sugiro uma singela proposta de transição socioambiental vegana abolicionista, resumida em
alguns objetivos (apresentada na tese de doutoramento deste que vos escreve), e que
denominei de Objetivos para as Sociedades Sustentáveis, os OSS.
Objetivo 1: Descarbonizar a economia mantendo em solo as reservas de petróleo
em areias betuminosas, do petróleo de xisto, do petróleo em águas profundas ou ultra
profundas (incluindo as reservas do pré-sal e do círculo polar ártico) e investir em fontes
renováveis de energia (eólica, fotovoltaica, maremotriz e biomassa), alterando a matriz
energética mundial de 80% das fontes primárias de energia provenientes de combustíveis
fósseis (de petróleo, do carvão e do gás natural) para, no máximo 30%, em um período de
transição de não mais que 10 anos.
Objetivo 2: Abolir o cálculo do PIB e adotar outro indicador de saudabilidade das
sociedades, incluindo as externalidades e as atividades consideradas não produtivas, mas
que geram valor social independentemente de gerarem valor monetário para o agregado do
país.
Objetivo 3: Localizar a produção de energia, de alimentos e de todo tipo de bem
físico possível em experimentos do comum ao nível das aldeias e dos municípios,
favorecendo circuitos curtos, tanto de produção quanto de consumo. As comunidades de
energia são um bom exemplo de iniciativa.
Objetivo 4: Estimular a produção de alimentos biológicos (orgânicos),
prioritariamente sob uma base agroecológica.
Objetivo 5: Promover uma dieta baseada em plantas, respeitando os direitos
animais.
Objetivo 6: Criar mecanismos de valorização, proteção e divulgação dos saberes
tradicionais das comunidades do planeta, promovendo o diálogo destes com o
conhecimento produzido pela ciência, em suas várias vertentes – ocidental, chinesa
clássica, indiana (ayurveda) e demais –, ampliando a possibilidade do surgimento de uma
medicina integrada.
Objetivo 7: Disseminar e fortalecer redes de experimentos do comum, forjando
novas subjetividades não baseadas na lógica da propriedade e da acumulação de capital,
mas no valor do uso comum.
Objetivo 8: Estabelecer plataformas colaborativas para o intercâmbio de bens,
serviços e de tempo produzidos pelos cidadãos e criar moedas do comum, não
 
fundamentadas em relações de propriedade, mas em relações sociais solidárias e
colaborativas que não subjugam um dos lados no processo de transação.
Objetivo 9: Estabelecer uma renda básica (Rendimento Básico Incondicional) a
todos os cidadãos, desvinculando renda e trabalho, quebrando o vínculo entre riqueza e
propriedade e ampliando a liberdade para que cada indivíduo desenvolva sua autonomia
como ser social.
Objetivo 10: Erigir um novo modelo político que promova o exercício de cidadania
plena – o autogoverno dos cidadãos –, de baixo para cima, nos bairros, nas aldeias, nas
cidades, mediante a constituição de assembleias de cidadãos para o diálogo sobre todas as
questões que os afetem.
Proposta utópica? Talvez, mas uma utopia para o agora, para o momento presente.
E que contribui para desencadear um processo de reconexão entre os seres humanos e
entre eles e seres de outras espécies, estabelecendo relações mais sustentáveis.
 
Sobre o autor
 
Ernesto Luiz Marques Nunes, cidadão luso-brasileiro, ativista vegano e socioambiental, pai
do Rafael e do Felipe. Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo,
mestre em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutor em
Ciência Ambiental, também pela Universidade de São Paulo. Professor universitário e