Sororidade: é este o apelo que vos faço, na esperança de que independentemente das pequenas divergências e escolhas individuais (mais ou menos condicionadas), possamos empoderar-nos naquilo que nos une enquanto mulheres: a real liberdade de escolher.

Feito este apelo importa perceber o que é, e em que consiste, um Rendimento Básico Incondicional (RBI).

O que é o Rendimento Básico Incondicional?

Sucintamente o RBI é uma prestação atribuída a cada cidadão, independentemente da sua situação financeira, familiar ou mesmo profissionalIdealmente o seu valor deve ser suficiente para viver com dignidade e não meramente para sobreviver acima do limiar da pobreza. 

Assim, importa reter que um RBI é Universal – porque se aplica-se a todos e todas e não exclui ou discrimina ninguém, é Livre de obrigações, e sem requisitos a cumprir ou burocracias, e é também Individual – porque garante autonomia às pessoas independentemente da sua situação familiar. (1)

Mas o RBI está longe de ser uma medida simplista de distribuir dinheiro às pessoas. Envolve toda uma mudança de paradigma na construção de um novo modelo de sociedade colaborativa em conjunto com outros mecanismos. (2) O RBI pode ser um forte incentivo e ferramenta na erradicação da pobreza e uma solução para o desemprego tecnológico em massa, que se avizinha com a 4ª Revolução Industrial. Mas esta medida pragmática e progressista é transversal a várias problemáticas e poderá ter impacto também na igualdade entre géneros. Para uma melhor compreensão das repercussões do RBI nesta questão é preciso analisar o papel da mulher nos dias de hoje e sobretudo na realidade europeia. 

O papel da mulher nos dias de hoje

O papel do “homem provedor de sustento” e da “mulher cuidadora” está ainda profundamente enraizado no contexto europeu e as desigualdades persistem, o que é facilmente comprovável através dos vários relatórios/estudos sobre igualdade de género no seio da União Europeia e mais concretamente em Portugal. (3)

As reivindicações feministas assumem uma dupla vertente: por um lado a participação das mulheres no mercado de trabalho, com igualdade de oportunidades, e por outro a valorização do trabalho de criar e cuidar.

Ambas são válidas mas a estrutura societal continua a privilegiar a dominância do “provedor” face ao “cuidador”, quando ambos desempenham papéis importantes. Há mulheres que rejeitam ser cuidadoras e preferem ser elas a dar cartas num mundo do trabalho ainda muito masculinizado, há mulheres que podendo, escolhem ser cuidadoras, outras são empurradas para esse papel, noutros casos é-lhes pedido que escolham entre a maternidade e a carreira (algo que raramente é equacionado por um homem). Mas numa sociedade que penaliza fortemente a maternidade são as mães que pagam a maior factura, que se traduz numa forte carga mental: a tarefa invisível das mulheres de que ninguém fala inclui não apenas as tarefas mecânicas, que muitas vezes delegam nos homens, mas todo o trabalho de planeamento, organização e tomada de decisões em casa que é assumido principalmente por elas. Um trabalho não reconhecido que pode aumentar o stress e os conflitos entre casais.

As mães que também trabalham fora de casa enfrentam ainda a discriminação laboral e muitas vezes os remorsos do tempo insuficiente que passam com os filhos. Entre o tempo de deslocação para o local de trabalho, a sobrecarga de horário no emprego, o trabalho não remunerado e a carga mental as mulheres estão esgotadas sem tempo para si, para a família e para a comunidade (voluntariado, associativismo, sindicalismo ou política) e isso não é igualdade e é indigno de uma sociedade sã. 

Toda esta realidade tem efeitos desastrosos nas famílias e no bem estar das mulheres que sofrem mais de problemas de saúde mental do que os homens. As estatísticas disponíveis são muito claras a este respeito.

Segundo o  estudo “As mulheres em Portugal, hoje”, encomendado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e divulgado o ano passado, “a mulher portuguesa tem um nível de esgotamento enorme” que se pode traduzir em problemas de saúde física e psicológica. Uma das coordenadoras deste estudo, a economista espanhola Laura Sagnier referiu que “é triste como os homens em Portugal estão a colaborar tão pouco”.  A meu ver isto é o reflexo de uma sociedade ainda muito patriarcal e sem mais mecanismos e políticas públicas que corrijam esta situação poderá levar “pelo menos cinco gerações” para que esta seja alterada. (4)

Mais, o estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) revelou em 2018 que as mulheres continuavam a gastar mais tempo do que os homens a fazer trabalho doméstico não remunerado e, em todos os países, eles têm mais tempo de lazer. (5) Nos salários os valores também não são famosos. Portugal ocupa o 3.º lugar. As portuguesas passam 5h28 diárias a tratar da casa e dos filhos, enquanto os homens ocupam apenas 1h36, a mais baixa da Europa depois da Turquia. Num ano isto equivale a meses de um emprego a tempo inteiro não remunerado. (6)

Este trabalho não remunerado não é valorizado e é tantas vezes visto como uma memorização do papel da mulher em relações de dependência conjugal. Tomemos o exemplo de um casal que escolhe que a mulher fique a cuidar dos filhos e que ele providencia rendimento. Se a relação terminar, e aquilo que devia ser uma decisão da família, para a família, acaba por ser mais prejudicial para a mulher, quando ambos trabalharam arduamente. A grande diferença é que apenas um dos trabalhos implica uma remuneração. Terá sido o homem que “sustentou” a mulher para ficar a cuidar dos filhos de ambos ou foi ela que “o apoiou” na sua carreira dedicando o seu tempo aos filhos de ambos? Seja qual for o motivo ambos os trabalhos são válidos e ambos deviam ser reconhecidos como tal.

A todos os dados acima acrescento que no relatório da OCDE publicado o ano passado é referido que “as mulheres são sobretudo discriminadas no seio da família” e que “enquanto a sociedade continuar a esperar que as mulheres sejam as responsáveis pelo trabalho não pago e pelo trabalho doméstico, ou enquanto lhes for negado igual estatuto e poder de decisão dentro da própria casa, não haverá reais mudanças e as reformas legais terão apenas um efeito limitado”. (7)

Por outro lado também assistimos a uma mudança de paradigma no género masculino já que cada vez mais homens querem, e bem, tomar parte activa da educação dos seus filhos. Ambos os géneros podem, se assim o desejarem, ser simultaneamente cuidadores e provedores.

Mas se este trabalho fosse reconhecido e valorizado, teria um peso e um impacto muito substancial a nível económico. O trabalho não remunerado de mulheres, que inclui as lides domésticas e a educação  dos filhos, de acordo com Office of National Statistics dados da Young Women’s Trust, tem um valor aproximado de 140 mil milhões de libras para a economia do Reino Unido. (8) Nós, mulheres, não estamos de férias nas licenças de maternidade e trabalharmos diariamente pro bono numa sociedade discriminatória.

RBI e liberdade de escolha

Um RBI seria uma forma de valorizar esse trabalho. Reconhecer que ele existe e que tem valor. Poderia, na teoria, empoderar a mulher que naturalmente não precisaria de trabalhar de forma remunerada tantas horas. Permitindo-lhe gastar tempo para si, para a família e para a comunidade. 

Como curiosidade nos anos 70, nos Estados Unidos da América, com a administração de Richard Nixon, um projecto piloto de RBI foi abandonado porque os dados recolhidos mostraram um alegado aumento dos divórcios, o que há época não agradou aos conservadores (dados estes que se mostraram incorrectos). Mas que sociedade queremos? Uma que nos dá liberdade de escolha ou outra, a que temos, que nos obriga a permanecer sem o desejarmos em situações de dependência ou em alguns casos de perigo de violência doméstica?

Existem duas alas feministas: uma que defende que o RBI empurra ainda mais as mulheres para casa e que as donas de casa, com esta política, perdem incentivos para lutar pelas oportunidades do mercado de trabalho num estatuto de subordinação das mulheres; outra que defende exactamente o contrário que com um RBI as mulheres podem encontrar trabalhos com melhores condições laborais e dignas e podem inclusive trabalhar menos horas, ou de casa para se dedicar ao trabalho não remunerado se assim o entenderem.

Um aspecto que deve ser tido em consideração nesta discussão, no que respeita ao serviço doméstico, é que é através deste que uma parcela considerável de mulheres se liberta dessas “responsabilidades domésticas”, externalizando-as para outras mulheres. (9) Ou seja que entendimento fazemos nós sobre a igualdade de género e quais as mulheres que temos em mente na promoção dessa igualdade de género. A meu ver o foco deve ser colocado na ESCOLHA e apenas pode ser livre de escolher quem está seguro a nível económico independentemente do género sim, mas também da classe, da etnia ou da nacionalidade. 

O argumento que o RBI vai empurrar as mulheres para casa é rebatível até pela experiência na Islândia que ao igualar os direitos parentais tudo mudou. Os pais passaram a ficar mais em casa e a desigualdade salarial diminuiu sendo neste momento o país mais igualitário a esse nível. Isto porque compreenderam que a desigualdade salarial começa em casa e que empoderar os pais em casa é também uma forma de empoderar as mulheres e com isso ganham as famílias, as crianças.

Conclusão

Um RBI pode ajudar a empoderar a mulher na sociedade e simultaneamente permitir ao homem que este passe mais tempo em família se assim o entender. A verdade é que quando existe uma rede de segurança multiplicamos o leque de opções para o casal e maioritariamente para a mulher. Quer esta decida trabalhar a tempo inteiro, trabalhar menos em part time ou não trabalhar remuneradamente de todo e isto serve também para os homens que queiram activamente viver o crescimento dos seus filhos.

Assim, o RBI juntamente com outras ferramentas (como sejam o maior investimento na educação, igualar as licenças de parentalidade (10), o alargamento das quotas de paridade a diferentes sectores, a redução do horário de trabalho entre outras) podem contribuir para uma maior igualdade entre géneros dentro e fora de casa onde a liberdade (real) de escolha para todos os homens e todas as mulheres é a chave para uma sociedade mais justa e igualitária com efeitos positivos na autoestima e no bem-estar das populações.

Artigo de opinião da autoria de Sandra Marques

Disponível aqui


Referências

1 – MERRIL Roberto; BIZARRO Sara; MARCELO Gonçalo;PINTO Jorge (2019). Rendimento Básico Incondicional: uma defesa da liberdade, Edições 70 – ISBN 978-972-44-2274-9

2 –  BREGMAN Rutger(2018). Utopia para Realistas: Em defesa de um rendimento básico incondicional, da livre circulação de pessoas e de uma semana de trabalho de 15 horas, Bertrand Editora.

3 – Disponível em: igualdade-de-genero-ao-longo-da-vida-resumo-do-estudo (ffms.pt) Disponível em; WEF_GGGR_2017.pdf (weforum.org) Disponível em: Global Gender Gap Report 2018 – Reports – World Economic Forum (weforum.org). Disponível em: Portugal foi o país onde a diferença salarial entre homens e mulheres mais aumentou na UE – União Europeia – Jornal de Negócios (jornaldenegocios.pt) Disponível em: Children and Gender Inequality: -0.2cm Evidence from DenmarkKleven: kleven@princeton.edu; Landais: c.landais@lse.ac.uk; Søgaard: jes@econ.ku.dk. We thank Oriana Bandiera, Tim Besley, Raj Chetty, Claudia Goldin, Hilary Hoynes, Lawrence Katz, Gilat Levy, Marjorie McElroy, Suresh Naidu, Torsten Persson, and numerous seminar participants for helpful comments and discussions.0.5cm (nber.org)  Disponível em: Gender – OECD

4 – Disponível em: resumo-do-estudo-as-mulheres-em-portugal-hoje (ffms.pt)

5 – Disponível em: http://www.oecd.org/gender/balancing-paid-work-unpaid-work-and-leisure.htm

6 – Disponível em: Faltam cinco gerações para os homens portugueses partilharem tarefas domésticas – Observador

7 – Disponível em: OCDE: Portugal tem níveis de discriminação muito baixos contra mulheres | TVI24 (iol.pt)

8 – Disponível em: Young women’s unpaid work worth £140 billion (youngwomenstrust.org) Disponível em: Young Women’s Trust (youngwomencount.org)  Disponível em: UnpaidWorkResearch.pdf (youngwomenstrust.org)

9 –  COELHO, Lina (2018) Rendimento Básico Incondicional, Segurança Económica e Igualdade de Género, no Quadro do Capitalismo Pós-Industrial in Revista Portuguesa de Filosofia. 

10 – Disponível em: Act on Maternity/Paternity Leave and Parental Leave, No. 95/2000 (government.is)